Quem sou eu

Minha foto
Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A FLIP esqueceu do coitado

Tão difícil quanto pronunciar paralelepípedo é encontrar um autor brasileiro de ficção na lista dos dez mais vendidos. Se você não é mago, pesa menos de cento e trinta quilos e está longe de compor a trilha sonora de sua geração, esqueça: seu destino é perpetuar o ciclo de minúsculas tiragens do romance nacional. No máximo, três mil exemplares e algumas resenhas feitas por amigos que dividem o chope no bar da esquina. E, é claro, as posteriores lamentações por não ser conhecido do grande público.
São uns ignorantes, você dirá. Incapazes de entender sua proposta temática e penetrar no brilhante jogo de linguagem com o qual conduziu a obra. E jogará os mesmos paralelepípedos que não consegue pronunciar nesses bárbaros incultos, torcendo para que rachem suas cabeças limitadas. Vender é uma heresia. Quem precisa de público? Leitores pra quê? Quem gosta de platéia é foca amestrada. Você é um artista, um intelectual. Tem o reconhecimento da crítica e sempre é convidado para os principais festivais de literatura. Você é um sucesso. Até que...
Para seu espanto, o curador da Feira Literária Internacional de Paraty esqueceu de incluí-lo na programação. Não é possível, deve haver algum engano. Logo você que tem tanta intimidade com os paralelepípedos da cidade! Conhece-os pelo nome, pela tez! Só pode ser coisa daquela invejosa que criticou seu último livro! Minha filha, liga pra editora!
Você vê a lista de convidados na internet. Maria está na mesa de abertura: isso combina mesmo com ela, é uma coadjuvante. João participa do debate de sexta à noite: vai ficar vazio, todo mundo bebendo nos bares. Meu Deus, Jorge está no horário nobre! Só porque ganhou o prêmio da tartaruga no ano passado? É um absurdo! E se esquece de que ganhou o mesmo prêmio no ano anterior, motivo pelo qual foi convidado para o evento.
Prossegue na digestão da lista. O estômago arde, a boca resseca, o fígado desapareceu. Andréa vai falar no sábado? Só porque vendeu dez mil exemplares daquele livrinho de memórias disfarçadas? Leitor sério não se interessa por isso. A crítica destruiu essa garota. Aninha também está na mesa? Mas essa é ainda mais nova! Onde vamos parar? E ainda tem o Sandro, o Rui e o Chico. O Chico? Quem é esse tal de Chico? Alguém me diz quem é o Chico, por favor!!!
Você se desespera. Dá um soco na tela do computador, bate com a testa no teclado. Outros ilustres desconhecidos aparecem como convidados de honra. Nunca ouviu nem ouvirá falar neles. São comerciais, escrevem fácil, agradam o público. Vendilhões do templo, não sabem nada de literatura. São como esses jornalistas que fazem ficção, reis da superficialidade.
Para você, a literatura é experimentação, é linguagem, é invenção. A história não tem a menor importância. Quem se importa com isso é leitor barato, sem erudição. Você sabe que a literatura é a única arte em que ainda permanece essa divisão entre erudito e popular. Em todas as outras há misturas, fronteiras híbridas. Melhor assim: mantém nosso feudo.
A linguagem acessível não é literatura. Contar uma história não é literatura. Só o que você faz é literatura. Mesmo que seja chato, hermético e besta. Não importa. Você escreve um livro e pergunta: tá vendo como sou genial? Tá vendo aquela passagem? Entendeu a minha sacada? Fui eu que fiz!
A história é só um detalhe. Seu nome na capa é o que importa. Mesmo assim, estanha que suas tiragens não passem dos três mil exemplares. Você faz como os outros, não é diferente. Segue a cartilha da crítica acadêmica, tem amigos na imprensa, frequenta as festinhas. Não dá pra entender. Por que só você ficou de fora da festa?
A resposta está no jornal. É o efeito flip. A feira literária projeta os escritores, faz aumentar as vendas, cativa o público, chama a atenção dos editores. Vinte mil pessoas passam pela cidade, pisam nos paralelepípedos, ouvem palestras, assistem a shows, participam de oficinas, compram livros. Mas você é contra tudo isso. Quer continuar com sua panela elitizada, na alta cultura, no umbigo sardento da erudição.
Eventos como a Flip mostram que a literatura não pode ser um clube de comadres. A participação do público e o interesse pelos escritores avalizam a idéia de que o texto é uma forma de expressão com potencial para atingir a sociedade no horizonte maior, sem se limitar a uma elite.
Mas você conhece os paralelepípedos e não vai se sujeitar a essa falsa democracia. Ainda bem que não foi convidado.

Nenhum comentário: