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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O cronista sem jornal (sexta no Jornal do Brasil)


O CRONISTA SEM JORNAL

Muitos anos depois, diante do pelotão de fotógrafos e jornalistas, Nicole haveria de recordar aquela tarde gelada em que leu a última crônica de Antonio Pastoriza. Botafogo era então um bairro pacificado, livre da violência urbana dos anos anteriores, protótipo de um suposto modelo de segurança pública que serviria para toda a cidade: polícia no morro, milícia disfarçada no asfalto e a periferia esquecida pelo estado. Mas a primavera atípica, com nuvens pesadas e temperaturas glaciais para a época, deixava as mãos trêmulas, ásperas, sem confiança. A respiração arquejante parecia em contraste com a tranquilidade do lugar.

O vento na varanda levantava as folhas do jornal. Era preciso dobrá-lo em quatro, além de se desvencilhar das páginas de política e cultura. O que ela queria ler estava na editoria de opinião, onde eram publicados os textos de romancistas, poetas, médicos, advogados, professores, humoristas, sádicos e afins, uma editoria redundante, pensava, tratando como exceção apenas as linhas semanais de seu escritor favorito.

Mas o que viu estampado no papel sujo foi decepcionante. Não valia nem o esforço contra o vento. Então era isso? Só isso? Nada mais do que isso? A última crônica de Pastoriza resumia-se em ser apenas a última crônica de Pastoriza. Nada de gestos heroicos, paixões impertinentes, amores impossíveis. Nada de nada. Mil vezes nada. Não, não podia ser. Isso não era papel para um cronista!

Onde estavam as metáforas brilhantes, as metonímias inteligentes, as frases reveladoras? Naquele momento se arrependia de cada minuto perdido com as leituras anteriores. Dos atrasos para a aula de dança, das brigas com o namorado, do peixe esquecido no aquário, da cerveja solitária no sofá, da cumplicidade que acreditava ter. Definitivamente, o sujeito não a merecia.

Querida Nicole, perdoe a despedida sem glamour, o texto insosso, a criatividade zerada. O amor acabou, a amizade ruiu e o papel do jornal agora é outro. Deixo apenas aquele beijo na testa que é pior do que dizer adeus.

Cronista sem jornal não é ferrari sem gasolina, é fusca sem capô, cavaquinho sem corda, praia sem chinelo, botequim sem cachaça, batata sem bife, Nelson Sargento com dentadura.

Cronista sem jornal é erro de semântica. É dialética a prazo, sem juros, em dez vezes, nas Casas Bahia. É a perda da sintaxe, do sentido. É a gramática velha, a ortografia antiga, com trema e acento nos ditongos orais crescentes.

Cronista sem jornal não tem direito ao último pedido, ao afago feminino, ao gozo embevecido. Cronista sem jornal não tem direito a voltar no tempo e pedir a leitora em casamento.

Cronista sem jornal é Pastoriza sem Nicole. E uma vida pela frente.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O amor enlouquece


Que história é essa, doutora? Por que ele nunca voltará a ser o que era? Tudo bem, tô ouvindo: ninguém se banhará duas vezes nas águas do mesmo rio. Isso é filosofia grega? Então é antigo pacas! E o que esse tal de Heráclito sabe sobre o meu marido? Quando a gente olha para a margem do rio, a água já passou, portanto é outro rio. Essa parte eu entendi, mas não compreendi. Então: nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia. É! É poético! Parece letra de música. Mas não esclarece nada.

Chega de metáfora, doutora. Isso deixa a gente ainda mais confusa. Por acaso, você é um rio, Carlinho? Fala, criatura! Pelo menos, responde às perguntas. Esse rio deve estar cheio de piranha, doutora. Não, não tô sendo grosseira. Tô falando de traição mesmo. Conta pra ela, Carlinho.

Eu ouvi, ninguém me contou. Ele não sabe disfarçar, é incompetente até na hora de ter um caso. Que tipo de homem dá o telefone de casa pra amante? Isso é primário, doutora! É muita burrice! O celular existe pra quê? Não, eu não falei com ela. Nem escutei a conversa na extensão. Mas toda vez que eu atendo, desligam. Só pode ser ela, a perua. Às vezes, fico em silêncio pra ver se identifico a voz, mas ela é malandra, não fala nada. Deve perceber que sou eu pela respiração. Mulher traída respira mais fundo, ofegante. Toda amante sabe disso.

Tenho vontade de procurar um desses garotos marombados de academia e dar o troco. Mas falta coragem. Ia dizer o quê? Prazer, meu nome é Olga, sou corna e tô a fim de me vingar. Quer dar umazinha comigo? Não consigo, doutora. Tenho chifre, mas sou honesta. Ainda me resta dignidade.

Claro que tenho certeza. Pelo olhar, doutora. Não é o olhar dele, é o dos amigos. Fala aí, Carlinho. Confessa logo! Os amigos me olham com pena, como se eu fosse uma coitadinha. Olha lá a chifruda! Todos ficam com aquela cara de segredo, cochichando pelos cantos. Eles também devem ter suas pururucas aí pela rua.

É genético. Há um cachorro no DNA de cada homem, não tem jeito. Só que precisa ser discreto, né doutora? Meus outros namorados não eram santos, mas não davam bandeira. Nunca tive problema, nunca desconfiei de nada. Só o Carlinho consegue me deixar assim. Por que, doutora? Por que ele não se transforma num ogro verde e fedorento? Claro que ainda me interessaria por ele.

O cara não precisa ser bonito, mas tem que ter pegada. E tem que gostar de uma mulher só. Uma só, entendeu? Conheço uma porção de exemplos, doutora. Tem o Cyrano de Bergerac, aquele do narigão. Lembra dele? E do Lancelot, apaixonado pela rainha? Tem também o Romeu, maluco pela Julieta. O Bentinho, alucinado pela Capitu. O Titus, perdido de amor pela Berenice. Taí: boa lista. Três caras de pegada: Shakespeare, Machado e Racine.

Não estou confundindo autor com personagem. Quem disse que eram bonitos? Claro que não. O Romeu devia ter um monte de espinhas na cara. Só um cara muito feio fala em forma de verso. Dá um tempo, doutora! Vê se o Carlinho já fez alguma poesia pra mim?! Fez, Carlinho? Fez? Ele não escreve nem cartão de natal. Tá economizando pra amante, não tem outra explicação. Se fosse um filme, tocaria aquela musiquinha de mulher mal amada, tipo Empty garden ou Candle in the wind. Detesto o Elton John, doutora.

A realidade é diferente, eu sei. Não pense que vivo no mundo da fantasia. Gosto de cinema, leio romances, vou ao teatro. Mas conheço muito bem a vida real. Só que a minha vida real é isso aí. Real demais, doutora. Não tem a menor graça. A realidade me sufoca. O Carlinho também. Cadê meu príncipe? Fiquei com o sapo e não existe aquele truque do beijo. Na minha realidade, nada se transforma. E ainda vivo o papel de bruxa na história, com a maçã na palma da mão e uma verruga na ponta do nariz. Não sou Gata Borralheira nem Cinderela. Meu nome é Olga, a bruxa.

Tá rindo de quê, Carlinho?